Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência,
sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no
morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se
misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e
aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e
sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas,
resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.
Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles,
havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no
debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma
idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista,
inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e
defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do
instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os
serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e
eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e
desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu
um instante, e respondeu:
- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.
Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois
ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na
natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada
sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela
multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela
inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, -
uma conjetura, ao menos.
- Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento,
e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um
caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se
trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...
- Duas?
- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha
de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar
de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto
e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens,
um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a
alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma
máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa
segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é,
metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente
metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da
existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus
ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal;
punhal que me enterras no coração
exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a
mesma...
- Não?
- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a
pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e
de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de
natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi
um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade,
suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que
muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera;
cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do
Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...
- Perdão; essa senhora quem é?
- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros
mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe;
restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...
Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia.
Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia,
fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa
de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que
conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a
narração:
- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda
Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão
orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria
sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes,
como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e
que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita:
nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e
passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas
que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por
amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que
morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que
fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à
vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que
não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu
alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que
tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província
não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes
para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela
abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão
do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor
alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo
mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não
imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr
no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa,
cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta
herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João
VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente
muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins
esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros
caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...
- Espelho grande?
- Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a
melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que
não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes"
merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios,
fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e
completou. Imaginam, creio eu?
- Não.
- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas
não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade.
Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das
moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me
falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou
comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no
passado. Custa-lhes acreditar, não?
- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.
- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor
definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo
antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em
que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores
humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão
apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era
exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de
suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte.
Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao
cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a
aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só,
com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão,
alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas
em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns
espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos
intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas
cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica
interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de
protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser
coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de
louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia eu suspeitar a
intenção secreta dos malvados.
- Matá-lo?
- Antes assim fosse.
- Coisa pior?
- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de
movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só,
sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada.
Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que
fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as
moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano.
Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que
não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras
horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco
perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando
conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha
prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum;
finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que
tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde
comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e
não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia,
nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes.
Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais
cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula